Índios isolados, trabalhadores em fuga: um encontro amazônico
Por Ana Aranha
Os seis trabalhadores da construção civil estavam perdidos em
meio à floresta amazônica, no norte de Rondônia. Algumas horas antes, eles
tinham corrido mato a dentro para fugir do caos que tomara o canteiro de obras
da usina hidrelétrica de Jirau, onde a Polícia Militar reprimia o movimento
grevista, em 2011. Depois de andar cerca de seis quilômetros, o grupo tentava
encontrar o caminho de volta à obra, ou a estrada, ou qualquer sinal de
urbanidade. Sem sucesso.
Ao invés disso, foram encontrados.
Sem perceber que estavam sendo cercados, os trabalhadores
uniformizados se viram rodeados por oito índios nus. Eles tinham o rosto e
corpo pintados, flechas em punho e “murmuravam" palavras em uma língua que
os trabalhadores não conheciam. Mas logo interpretaram o sentido: estavam
rendidos.
Hoje, excepcionalmente, esse espaço não será dedicado a um
retrato, mas a um encontro. Encontro que pode servir de pista para compor o
retrato dos povos indígenas que habitam o nosso país e os quais temos tanta
dificuldade de entender.
Assustados, os trabalhadores da usina se comportaram como
prisioneiros dos índios. Seguiram seus passos e pararam quando eles
sinalizaram. O coração disparava a cada vez que os índios se reuniam em
círculo. Observaram a construção de uma espécie de churrasqueira com gravetos,
onde um porco do mato foi assado. Disfarçando o mal estar, comeram cada pedaço
de carne que lhes foi oferecido. À noite, um dos trabalhadores foi repreendido
pelos colegas por espiar os seios da índia mais nova, a regra era olhar para o
chão.
A madrugada avançou, alguns índios deitaram e adormeceram. Os
trabalhadores ficaram alertas. Pela manhã, caminharam até chegar a um local
onde se ouvia um barulho familiar. Os índios sinalizaram em direção ao som,
disseram algumas frases que ninguém entendeu e foram embora. Os trabalhadores
correram na direção indicada até que, exaustos, chegaram à rodovia federal BR
364.
Esse relato foi registrado pela historiadora Ivaneide
Bandeira Cardozo, da ONG indigenista Kanindé, que entrevistou um dos trabalhadores
na presença de um funcionário da Funai (Fundação Nacional do Índio). Ela
acredita que os homens e mulheres descritos sejam parte de um grupo que a
entidade e a Funai tentam rastrear há anos. “Pela descrição, parecem ser
Kawahiba isolados”.
“Isolados” são os índios que não têm contato com a nossa
sociedade, ou porque nunca cruzaram com um não-índio (casos cada vez mais
raros) ou porque recusam o contato.
Na região que foi alagada pela usina de Jirau, havia rastros
de um grupo isolado e nômade. A empresa repassou dinheiro para que a Funai
mapeasse esses rastros. Depois de identificados, eles deveriam ganhar uma área
de proteção. Mas o investimento não foi suficiente para encontrar ou proteger
os índios.
Ao contrário, foram eles que encontraram e salvaram os
funcionários da usina. “É difícil entender o que passou na cabeça dos índios
quando viram os trabalhadores perdidos”, reflete Ivaneide. “Por que decidiram
ajudar? Nunca vamos saber”.
O encontro ocorrido em 2011 é o reflexo oposto do desencontro
que se deu na Câmara dos Deputados essa semana. Na terça dia 16, em uma cena
inédita, os deputados federais correram pelo plenário como uma manada
assustada. Fugiam de homens seminus, pintados de urucum e que balançavam seus
chocalhos para protestar contra a mudança da lei que define como as terras
indígenas são demarcadas.
Se o comportamento dos índios isolados e dos deputados deixa
alguma pista, é que continuamos longe de entender os povos que habitam a nossa
terra.
Quando retornaram à usina, os trabalhadores contaram sobre o
encontro, mas o supervisor deu risada, chamando-os de mentirosos. Como se fosse
impossível haver índios nas proximidades da obra, cravada no meio da floresta
amazônica.
Para Ivaneide, a precisão dos detalhes é a maior evidência da
veracidade da história. “Os trabalhadores eram de outros estados, uma pessoa
sem convivência com indígenas não poderia saber tanto. Ele descreveu a pintura
no peito, os traços no rosto dos homens, diferente das mulheres, a pena do
gavião real, como tratavam a ponta das flechas. Até os detalhes de como
montaram o moquém, que é onde assam a carne”. Segundo ela, o relato bate com
hábitos comuns a etnias que vivem ou viveram na região, algumas consideradas
extintas.
Existem 82 pistas de grupos indígenas isolados no Brasil, é a
maior concentração de povos isolados do mundo. Em março desse ano, os
funcionários da Funai fizeram uma carta aberta com um “pedido de socorro”.
Nela, escrevem que não há equipe para proteger esses grupos, cujos territórios
estão sendo invadidos pelas grandes obras, madeireiros e traficantes.
Como lidar com índios isolados é um dos temas mais complexos
dentro da política indigenista. Talvez a pequena mensagem deixada pelo grupo
que resgatou os trabalhadores e pelos que invadiram o congresso seja justamente
sobre os nossos limites. Os índios tem um modo diferente de ser, nem sempre
seremos capazes de entende-los. Talvez esses encontros sejam os momentos para
refletir sobre os impactos das nossas escolhas. E fazer um esforço para, a
partir dessa nova realidade, respeitar as escolhas deles.
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